12ª QUADRA - SETEMBRO DE 2007

01 - REFLEXÕES DE UM GAÚCHO
Autor: Vaine Darde
Intérprete: Antônio D. Barbosa
Amadrinhador: Henrique Scholz

O que se passa afinal?
será que estou invisível
ou vocês são meu delírio?
Será que ninguém me vê
com este baita chapelão
e um cavalo de monarca?
Ou eu estou transparente,
ou vocês são todos cegos!

Aqui estou. Aqui estou
com centúrias de história
e quilômetros de campo.
Geografia conquistada
sobre o lombo do cavalo.
Mesmo assim, ninguém me vê...
Todo mundo me ignora!

Quantas vezes já morri
peleando com castelhano
por uma nesga de mapa?
Quantas vezes me mataram
por desafiar o império
GRITANDO que estou aqui!
Mesmo assim, ninguém me vê...

Quantos vagões de seara
distribui pelo país
quando o pampa era um celeiro
sangrando safras douradas
pra deleitar os tiranos?
Me mataram tantas vezes
quando judiado de sal
eu tinha o ouro do charque
que engordava os navios.

Enquanto o velho império
lambuzava-se na corte,
me deixando ao deus-dará
nos confins das sesmarias,
quem digladiava de adaga
com o paisano invejoso
que bolinava a fronteira?

Eu sempre estive presente,
não declinei das peleias,
eu nunca fugi da raia,
nem me encolhi no tambor.
Quando a causa era a Pátria
que se formava no Sul,
quando o ideal era o homem


espoliado pelo homem,
sempre estive por aqui.
O vermelho na bandeira,
foi meu sangue que tingiu.

Eu não nasci brasileiro
mas me tornei por vontade
num tempo de formação
Quando paisano e patrício
Se mesclavam pelo pampa
sem limite e identidade...

Eu, sim, morri de lança na mão
pra erguer esta nação
que há muito me despreza,
desde tempos ignotos.
Sendo o garrão do país
eu sustento sobre o ombros
esta terra-continente.
Mas, talvez, me menosprezem
porque eu seja diferente,
porque me visto de história
E de bota e de bombacha
me enforquilho sobre um potro
transpassando mais um século,
contrariando a ganância
da Matriz que não me vê!

Mesmo assim, de qualquer jeito,
vou morrer mais uma vez,
e quantas vezes quiserem...
Não, pra me separar
pois a escolha foi minha...
Vou morrer mais uma vez,
se assim preciso for,
pra continuar brasileiro
de mestiçagem chirua.

Só não me peçam, jamais,
pra renegar as origens,
nem tentem, de forma alguma,
me tirar a liberdade,
porque, mesmo, ignorado,
invisível, transparente,
eu vivo pelo Brasil,
mas morro pelo Rio Grande!


02 - O BAILE DOS CACHORROS

Autor: Guilherme Collares
Intérprete: Francisco Azambuja dos Santos
Amadrinhadores: Guilherme Collares (violão) e Edilberto Bérgamo (Cordeona Três Hileras)

Foi num tempo, há muito tempo
Que esta estória se passou.
Tempo que os bichos falavam
-Minha avó, assim contou:

A cachorrada haragana
Que nestas pampas vivia
Por todas as qualidades
Que, em verdade, possuía:
Sua grande lealdade,
Amizade e harmonia,
Foi premiada com um baile
Por cristo, Nosso Senhor.
A Ser feito em campo aberto
-Lugar bento e de valor.

O alarido era grande
Da “perrada “ chimarrona.
Da serra até a fronteira
Da fronteira ao Uruguai,
Desde as praias do Rio Grande
Às coxilhas de Queguay.

Diz que por ordem maior
-talvez do próprio São Pedro –
Encomendou-se o conjunto
Que animaria o pulguedo:
Quatro bugius roncadores
-dos campos do alto da serra-
Bicho que canta muy lindo
-crioulos aqui da terra-
Dois Magangás Correntinos
Com cordeona botoneira;
Um Coati de bandoneon ;
Dois Graxains guitarreiros
-ponteadores de primeira-
Um Pica-Pau no pandeiro
Fundamentando a camanga
-e tava pronta a vaneira!

E a cachorrada latia
Faceira com a novidade:

-Um fandango deste porte
Vai ser bueno de verdade!
-Se a sarna me afrouxa o couro
Bamo vê se não dô pata,
Arrastando as alpargata
Co’as cusca do Cerro do Ouro!
E como cachorro e gente
Não sabem fazer junção
Sem terminar em peleia:

-Me disse a Jaguatirica,
Deserto loca de inveja,
Que joga até a cor das pinta
Que o baile vai dar em treva!

-Vai dar é fudunço feio
Se caso a gata atrevida
Vié bancando a metida,
Se entroduzindo no meio.

-Lá no bolicho da costa
Um Leão Baio bebia,
Fanfarronando borracho
Que ia dançá de espora...

-Não viu que tava oitavado,
Num canto contra o balcão,
O cachorro chimarrão
Mais brabo da raça veia!...

-No resultado da história
O tal felino valente
Dormiu o resto do dia
Com dois mangaço na idéia !

E assim corria a notícia,
Causando grande algazarra,
Como em qualquer ocasião
Que prenuncia uma farra.

Na tarde do tal fandango,
Numa várzea muito linda,
Abençoada por São Pedro,
Na costa do Camaquã;
A mando,como se sabe,
De Nosso Senhor Tupã,
O arcanjo Gabriel
E sua escolta celeste
Iniciam a função:
De limpar, fazer a copa,
Cortar chirca e mata-olho;
Quinchar o carramanchão,

E já desde muito cedo
A coisa já estava armada:
Pois era imensa a matilha
De tamanha cachorrada.

E, de fato, prenunciado
Que a coisa ia ficar feia,
Já davam mostra do pano
De como cachorro e gente
Não sabe fazer junção
Sem terminar em peleia.

Chegado a hora do baile,
E tamanha a confusão,
O arcanjo Gabriel,
Juntamente com seus anjos,
-que era policia da festa-
Veio trancando o garrão.

E gritou pra cachorrada,
Com jeito já meio brabo:

-Vai começar o fandango!
Mas por ordem de São Pedro:
Em terreno Santo e Bento
É de faltar ao respeito
Cachorro dançando com o rabo!

Ordem dita é ordem dada!
E cachorro que passava
Pela entrada, já deixava,
-num imenso gancheiro –
devidamente nomeada,
A cola, dependurada.

E o baile corria frouxo
No meio da polvadeira,
Enquanto a orquestra crioula
Tocava chotes, rancheiras,
E milongas e valseados,
Chamamés e chamarritas
E mazurcas e vaneiras.

Quando não mais que num upa
-e por causa de cadela –
Estourou a confusão:
Diz que um galgo castelhano
-Correntino ou Entre-Riano-
Acostumado na lida,
Escondeu palmo de adaga
Nas costelas de um cuscão.

E no mais, já nem precisa
Se dar mais explicação:
Derrubaram o candeeiro
E o fogo dos trinta e oito
É que serviram de lume
Pra quem queria função.
Quando o arcanjo Gabriel
-com mais oito provisórios –
Carregaram no entreveiro
Pronto e de talher na mão,
Só viram a cachorrada
Que espirrava porta-fora,
Disparando alvorotada,
De medo da confusão.

E por sair tão ligeiro,
Cada cusco que passava
Pela entrada, manoteava
Qualquer rabo ali à mão.

Houve até algum mais maula
- riscado a relho dobrado –
Que nem quis pegar a cola
Que ficou no tal ganchão.

Taí o cusco rabão!

E por causa dessa rata,
Nosso Senhor e São Pedro,
Resoveram – com justiça –
Não desfazer a trocança
De rabos, do tal bailão.

E é por isso que o cachorro,
Quando cheira outro cachorro,
Vai, então, direito ao rabo,
Procurando o próprio rabo
Que – com certeza – extraviou-se
Naquela triste ocasião.


03 - ELO QUEBRADO

Autor: Vaine Darde
Intérprete: Carin Burtet
Amadrinhador: João Batista de Oliveira

A chuva se derrama desde o cerro
e a noite trás acordes de cincerros
nas lágrimas da quincha sobre o balde...
Ah, que triste a cantiga da goteira
chorando tua ausência a noite inteira
vivendo o que me mata de saudade...

Insônia faz vigília no meu catre
a rondar a trsiteza neste aparte
com o vento a gemer nas casuarinas.
O que ficou de ti, não me consola,
tu deixaste a lembrança por esmola
e levaste o meu sonho de menina...

O que fazer sem ti nestes confins?
Foi contigo, também, parte de mim
e o pouco que ficou só me apunhala...
Nem mesmo tenho a graça das esperas
no pampa esplendorando a primavera,
no que ficou de ti naquela pala...

Pois tudo que me vive te acompanha
e o que morre por ti ainda sonha
florindo na esperança derradeira:
Um dia, num milagre, por amor,
também poder sorrir e gerar flor
assim como a vertigem da roseira...

O que te encanta tanto na cidade,
será que é prazer das novidades
a causa pela qual tu te fascinas?
Eu sei que o teu encato se resume
no luzeiro dos falsos vaga-lumes,
no brilho de néon dessas vitrinas.

Em busca de um presente sem futuro
esqueces um amor imenso e puro
e deixas violão, cavalo e lida.
Tu vais atrás dos outros bem-me-queres,
brincar de ser feliz com as mulheres
e esqueces que te dei a minha vida...

Ás vezes, o adeus é o pior desastre...
Eu sofro a tua ausência em cada mate,
eu vivo de morrer longe de ti.
Se um dia retornares dos teus sonhos,
não vai mudar, em mim, o olhar tristonho:
metade que foi tua eu já morri.

A dor que mais me dói neste abandono
é ver que um violão ficou sem dono,
é ver mais um cavalo sem peão...
Não sabes, mas, pra mim, a tua falta
não dói tanto na morte que me mata.
O que dói é viver na solidão.

Se ao menos me dissesses que te ias
Assim, eu, dessa forma, saberia
que fora porque em nós chegara o fim...
A mágoa que me mata e que se agrava
é ires sem me dar uma palavra
deixando o teu amor dentro de mim...

Fiz tudo... tudo fiz or tua causa,
bordei planos, sonhei co´aquela casa
que, um dia, tu farias para nós...
Mas, agora, o que faço do meu sonho,
continuo a guardá-lo? ou o deponho
na verdade do pranto mais atroz!

Talvez tenhas alguém que tanto adores,
que sorria por ti e também chore
como eu tanto chorei quanto sorri.
Mas, mesmo que esse amor que te cativa
faça tudo por ti e por ti viva:
Duvido que, também, morra por ti!


04 - PROSEADAS SOLITAS

Autor: José Luiz Flores Moró
Intérprete: Érico Machado Bastos
Amadrinhador: Marcus Morais

Antes...
Bem antes da luz da madrugada,
Nessa hora tranqüila em que a peonada
Busca sonos no campo das lonjuras,
O velho encontra vidas no galpão,
Conversando com o próprio chimarrão
No dialeto gauchesco das procuras!

Não!
Não que ele seja assim o tempo inteiro,
Mas nessa hora em que só o mate é companheiro
Ele rebusca os seus fantasmas do passado
E proseia, meu Deus! Como proseia!
Contando causos antigos de peleias
E façanhas de pingos mal domados!

Embora os olhos parados no horizonte
É visível, nessa imensa solitude
Um trejeito feliz na face rude
Com a lembrança repentina dos caudilhos.
O chimarrão irmana os peleadores
- Fraterno abraço entre Onório e Flores
Em transmissão de paz para seus filhos –

No ritual de bater tições,
As faíscas são reses de tropeadas
Que se perderam na poeira das estradas
Num tempo qualquer que já se foi,
Mas que o velho traz para o presente
E assopra para o alto, de repente,
Num grito saudoso de “eira-boi!”

Nos os olhos de lágrimas ardidas
A fumaça faz imagens nas retinas
Materializando no ar algumas chinas
-Antigos namoro e chamegos –
Fazendo com que, então, fale baixinho,
Palavras de retoço e de carinho
Que antigamente só dizia nos pelegos!

No galpão de paredes carcomidas
Reencontra, nas tropeadas obscuras,
As mesmas horrendas criaturas
Que povoaram seus medos de criança
E esconjura esses fantasmas de guri
Como se as mulas-sem-cabeça e os sacis
Não fossem, apenas, páginas da infância!

Pousa o olhar cansado e absorto
No tremelico das sombras do candeeiro
E recorda vividos entreveros
No comando de cargas e investidas
Gritando, numa síncope caudilha,
Brados que a epopéia farroupilha
Fez valerem mais que muitas vidas!

E passeia por um mundo que é só seu
Até que a noite, matiz de picumã,
Incendeia-se nas barras da manhã
E o galpão se transcende em realidade.
Então o velho volta a ficar mudo,
Mas mesmo assim consegue dizer tudo
Com os olhos molhados na saudade!

E quando o piazito diz: Vovô!
Conta uma história?
Dessas que o senhor inventa muitas vezes
De brigas, de tropeadas e de reses...
Dessas que só o senhor sabe inventar!
Então o velho levanta os olhos suavemente
E murmura para o neto, indiferente,
- Deixa pra lá, você não vai acreditar...!


05 - HISTÓRIA ANTIGA

Autor: Colmar Duarte
Intérprete: Pedro Júnior da Fontoura
Amadrinhador: Leonardo Charrua

Seu pai fora bolicheiro.

Por essas razões da vida
Que até mesmo quem mais sabe
Pouco consegue entender,
Depois de andar de agregado
Lavrando campos alheios,
Plantando pra não colher,
Fora virar bolicheiro
- com o que sobrara das secas,
Mais a mulher e os guris.

Embora homem de bem,
Se vira, mais de uma vez,
Às voltas co´a autoridade;
Diz que por contraventor.
É que coimeava uns carteados
(truco, golfo, primera
e até o solo era jogado
nos dias que os mais sabidos
se juntavam pra carpeta!)
Lá pra os fundos do bolicho
Fazia rinha de galos
E também jogo do osso.
Até que um mala-cabeça,
Revolvero e calavera,
Foi xarqueado numa briga.
O bolicheiro - coitado! -
Esteve até atrás das grades,
Pra desgosto do guri.

Por isso, não entendia,
Embora o pai explicasse;
Parece que os homens nascem
Com seus destinos traçados.
Uns pra serem delegados,
Outros pra andarem proscritos.
Quem manda leva no grito,
Quem ouve não tem razão,
Vai por diante - por mais potro.
Se - como dizem os demais -
Nós somos todos iguais...
Tem uns mais iguais que os outros!

Ficou moço, olhando estranhos,
Cotovelando o balcão.
Se fez homem, isolado
Nesse oásis do bolicho,
No fim do brete deserto,
Onde buscavam consolo
Os deserdados da sorte.
Onde peonada de estâncias
E tropeiros, de passada,
Esvaziavam as guaíacas
Pra estufar as algibeiras
E abastecer às bruacas.

Conhecia, como poucos,
A alma daquela gente.
Pois, um balcão de bolicho
É um xucro confessionário
Onde uns tragos de cachaça
Fazem um maula se ajoelhar,
Mostrando a alma contrita
E até o mais venta-rasgada
Frouxa o lombo, e se desarma
Pra chorar suas desditas.

Entendia, de sobejo,
As razões e os desenganos
De quem nasce despilchado;
Cresce para ser mandado,
Vive pisoteando estradas,
Morre sem deixar saudade.
Por isso arriscavam os cobres
Na tava ou numa carpeta
Quem sabe? Largando a jeta
Ficariam menos pobres.
Mas, cuê putcha! Até no jogo
Só ganha quem não precisa!
Quem joga a própria camisa,
Pula d´água... cai no fogo!
Ali mesmo, no bolicho,
Acontecera este fato.
Entre as linhas do relato
Vê-se a velha diferença,
Que, mais do que a gente pensa,
Se repete na memória.
Talvez outros personagens,
Outro céu, outra paisagem...
Mas, no fundo, a mesma história.

Se encontraram, por acaso,
Num dia de carreirada.
E, como sempre acontece,
O amor, quando aparece,
Não cuida da conseqüência.
Ele- pobre e sem querência,
Ela - filha de estancieiro.
O sonho é mau conselheiro
E a razão não tem valia
Para um coração amante;
É luz da estrela distante
Que morre ao nascer do dia.

Cercado pela milícia
Recebeu voz de prisão!
Seu amante coração
Nem pensou morrer peleando.
Entregou-se. Nada disse
Contestando a acusação.
Foi preso por insolente,
A mando do delegado!
Não vê que - desaforado! -
À vista de toda gente,
Esbarrou seu redomão
E, como prova de amor,
Ofereceu uma flor
À filha do seu patrão...

No registro da ocorrência
Ficou assim lavrado:
“ O maula foi degolado
por resistir a prisão.”


06 - A CULPA É TUA

Autor: Carlos Omar Vilela Gomes
Intérprete: Tânia Goulart
Amadrinhador: Piero Ereno

Se não estás aqui não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Não soube dos teus trancos e teus sonhos,
Nem lembro dos teus passos pelas ruas.

Não respirei teus medos e silêncios,
Nem tive o teu rosto em minhas mãos...
Não sei a dimensão dos teus momentos
Mas trago, a me levar, teu coração!

O nó da minha garganta desatou-se
Logo depois que tua voz calou-se...
Eu não sei onde nem por que razão.

Se não estás aqui, não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Se hoje sigo meus trancos e meus sonhos,
Se ainda gasto passos pelas ruas.

Te foste, mas ficaste, simplesmente,
Na minha vida, entregando mais que o bem;
Navegando no olhar de um outro alguém,
Que há pouco só mirava escuridão...
Te indago com espanto e com respeito:
Bem mais que o sangue
pulsando no meu peito,
Qual o tamanho do teu coração?

Em algum canto, um pai, sem ar,
em uma cama...
Em outro, as sombras de
uma mãe em dissabor;
Os filhos pela volta, cabisbaixos,
Impotentes, mesmo tendo tanto amor.
Logo adiante, um piá contava as horas
Vendo seu sangue circular por um motor!

Daí a pouco, o terror de uma tragédia,
Uma vida que acabara sem querer;
A pior dor pesando a cruz de uma família,
Em seu calvário, carregado de sofrer...
Bendita luz de Deus, que nunca cega!
Pois a dor, em doação, se fez entrega
E dessa morte outros puderam renascer!

È o milagre da vida que veio através de ti,
Pelos frutos dessa entrega
que semeaste por aí...
No pai que passa, risonho,
trazendo o filho no colo,
Na mãe que enxerga suas crias
brincando frente aos seus olhos...
No piá que corre faceiro,
tenteando algum bem-te-vi!

O coração é um órgão
De carne e de pulsação...
Que se transforma em poesia
No ato da doação.
Pois quando se doa um órgão
Se tem a exata medida
Que o amor que plantamos
É bem maior que esta vida.

Se não estás aqui não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Também por outros,
com seus trancos e seus sonhos,
Também por outros,
com seus passos pelas ruas.

Bendita seja a família que
respeitou tua vontade...
Bendita história de alguém
que soube amar de verdade
E entregou esse amor em forma de doação!
Te indago com espanto e com respeito:
Bem mais que o sangue
pulsando no meu peito,
Qual o tamanho do teu coração?


07 - O FILHO VARÃO

Autor: José Luiz Flores Moró
Intérprete: Leandro de Araújo
Amadrinhadores: Jean "Guitarreiro" (Jean Soares Prudêncio) - viola
Michael Soares Prudêncio - percussão

Quando os primeiros fios de barba
me mancharam o rosto
E a pompa de ser homem deu-me asas
No nômade motriz dos meus sentidos,
Parti do rancho ninho dos meus pais
Para a odisséia homérica
De me tentar ser eu!

Os corredores me apontavam como setas
Os horizontes que enxerguei por rumo
E a cada passo em que perdia o prumo,
Eu colecionava enciclopédias para as metas!

A saudade dos grilhões divinos
Que me abraçavam no calor materno
Aquietou-se no frenesi de enlevo
Que os olhos lindos de uma campesina
Lançou qual boleadeiras perfumadas
Nas patas largas do meu ir teatino!

Juntou sorrisos em trouxas de carinho
E fez partições com meus andares nômades!

Meu joão-de-barro foi fazer o rancho...
A parede barreada... Pau-a-pique...
Tabatinga sovada sob os pés...
O sonho inefável de parir família
Exauria-se e renovava-se a cada afago
Nas lãs macias do pelego lânguido
Que o suar banhava nas noitadas quentes!

Ah! Quanta ternura quando um ventre avulta
Trazendo à tona um pedaço da gente!
Quanta euforia na expressão inocente
De se dividir para tornar-se outro,
E de imaginar para o formar de um filho
A mesma liberdade e o mesmo brilho
Do céu azul que tem no olhar do potro!

Haveria de ser macho, como eu!
O primogênito tem de ser varão!

A intrepidez e o caráter vêm do gene,
Mas as manhas e a destreza eu ensino.
Será gaúcho guapo esse menino,
Pois a fruta rente ao pé, deveras, cai!
Será um taura... Não será maleva...
Pois eu sei que o piá eternamente leva
As coisas “buenas” que aprender com o pai!

Meu primeiro presente – Uma bombacha
E uma camisa de brim com mangas longas
Que ele haveria de “arremangar” nas tardes quentes
Em busca dos preás pelos banhados!
Depois... Um petiço patas brancas
Que o levaria, no tapete desses campos,
A conhecer os infinitos do campeiro
Para a epopéia feliz da sua infância!

Quando o setembro prenunciou rebentos
Na aquarela magistral da primavera
A dor no ventre converteu-se em amores
E o cálice da flor abriu-se em fruto
Para a metamorfose incrível do meu ego!

Haveria de surgir o meu varão...

Ah! Sina maleva de criar visões
E expectativas pra enfurnar nos sonhos!
Nós mesmos criamos as pedras para os muros
E o nosso sol que, às vezes, fica escuro,
É porque imaginamos que sempre será dia!
Não damos ênfase ao oposto, ao casual,
Não sabemos discernir o bem e o mal
Que a natureza mãe nos propicia!

Aquele chorinho em frenesi de vida
Nos braços da mãe, pedindo o seio,
Não me lembrou que era um macho que eu queria!
E a sua fragilidade linda me dizia
Que eu era o seu papai e ela minha filha!
Só quando a tive carente nos meus braços
E a envolvi nos grilhões dos meus abraços
Eu tive concepção do que é família!

Essa prendinha renovou meus sonhos,
Agora mais concretos... Mais reais...
E da vez que eu penso o meu varão querido
Já não mais choro e me entristeço mais!

Já a vejo numa eterna primavera
Esvoaçando as tranças nas corridas,
Atrás das borboletas coloridas,
Com a boneca de pano junto ao seio!
“Gracias” Senhor! Pela menina que me deste,
E pela forma divina em que fizeste
Eu esquecer o piazito que não veio!

Plantei meu pólen na flor
De uma roseira mimosa
E vi brotar, com terno amor,
Meu primeiro botão de rosa!

“Gracias” Senhor!


08 - ANHANGÜERA
*
Autor: Mateus Neves da Fontoura
Intérprete: Carlos Weber
Amadrinhador: Clênio Bibiano da Rosa

Venho do fundo do tempo
Me chamam diabo por velho.
Fui santo anjo no Império
Banido por traição
Sem alma, nem coração,
Sou só raiz de um passado
E venho hoje a esse pago
Despilchado de maldade
Pra primeira caridade
Desde os tempos de Adão.

Não debandem meus senhores,
Bem digo, venho em sossego!
De vós quero só um pelego
Porque o relato é comprido
E ando pouco dormido
Por pensar no desalento
Que me chegou pelo vento
Em parcos pingos de chuva:
O vosso campo quer cura,
Está morrendo ferido...

Mermaram os quartos de ronda,
Os tropeiros, as tropeadas.
O aboio das toadas,
Nas noites claras e mansas,
Se perdeu junto à andança
Que o tempo impôs ao seu jeito.
Despassito e sem direito
De contradita ou rebate.
Falta pouco pro arremate
De fazer tudo lembrança.

As carretas aonde andam?
Onde está o passo manso
Com choramingos e ranços
Dos eixos empoeirados?
- os muchachos desmamados
Hoje enfeitam moradas,
São adornos que as estradas
Perderam para os galpões
Alguns viraram tições
No fogo em meio ao rodado.

As taperas onde estão?
Aonde quer que se vá!
Aqui, ali, acolá...
... a esperar um retorno.
Silentes no seu entono
Feito um potrilho na forma
A vislumbrar sua hora
De ter o queixo quebrado
Sentindo o lombo apertado
Num dia claro de outono.

Não se vê mais o cantor
De violão, alma e garganta
Fazer levantar a pampa
Solito e sem atropelos,
Desfiando seus enredos
Desenredando injustiças
Cantando o pago, as conquistas,
Coisas de campo e de gente,
Com o mesmo olhar combatente
Do centauro dos varzedos.

Os orelhadores. Ah, os orelhadores!
Aqueles sim eram tauras.
Sujeitavam mil cavalos
Tinham no pulso um palanque,
Tinham a força de um gigante
Nos contrafortes machaços
Escorando os manotaços
De baguais e de aporreados
Nos rituais abençoados
Da religião do Rio Grande.

As boleadeiras se foram
Com maniclas e retovos,
Com seus pealos de estouro
- verdadeiras poesias –
Sumiram as três marias.
E o boleador campechano,
De bombacha de dois panos,
De vincha rubra na testa,
Virou legenda que resta
Pros comentários do povo.

Sumiram os bois franqueiros
E a cavalhada crinuda,
Aquelas velhas sisudas
Com caras de vacas brabas
Já não resmungam suas falas
Ao derredor das cozinhas.
Se foi o tempo em que as rinhas
Quebravam monotonias,
Chegou o tempo em que as vinhas
Cansaram das próprias uvas.

E assim me quedo por velho
Num último manotaço.
Guardem de mim um pedaço
Ao menos como lembrança
Pra assustar a criança
Que teima em fazer arte
Porque é seguro o aparte
Na boca do modernismo
Já chega de banditismo
Do diabo velho um abraço !!

* Anhangüera = diabo velho
em Tupi Guarani.

09 - A VOLTA DO ZÉ DA PINHA
Autor: Cristiano Ferreira
Intérprete: José Cláudio Pereira
Amadrinhador: Cláudio Silveira

Não!...
Não ficou tapera a fazenda antiga!

Arrendou os campos,
encilhou o flete
- poncho emalado,
manoteou nos peçuelos –
ganhou a estrada
rumo à ilusão urbanizada,
sina brasina dos campeiros
deixados à própria sorte.

Sim...
Antes de montar,
recorreu a casa, o galpão,
a velha e buena mangueira de pedras,
parou à sombra da figueira
- de chimarrear ao entardecer -
pitando o último “baio”
para dar rédeas à saudade!

Fitou...
Ainda pitando,
o palanque de corunilha,
que, ante o tempo, não cimbrou,
como... querendo ter a mesma fibra.

E, quando...
Já na partida,
o berro do touro, por trás da coxilha,
o relincho do potro, repechando no cerrito,
ecoaram em seus ouvidos num sonoro:
- “Adeus, parceiro!”.
seus olhos deram vazão às gotas
de um orvalho de sentimentos,
naquela manhã de sol,
sobre o alvorecer tordilho da geada!...

Não!
Não deixou tapera a antiga fazenda,
um outro chegou “às casas”!
Na cidade...
Somente de changas
- mais os cobres do arrendamento -
sustentava-se, a esposa,
e ao colégio dos piás.
Passaram-se floridas primaveras
após sebrunos invernos
e, a cada dia vencido,
contava mais uma rês
no rodeio das brasinas!

Os dias foram passando
e, as noites, foram pequenas...
até que o relincho do flete tordilho-negro
(que lhe agrada o pêlo),
como “invite” de “Se bâmo”,
sinalizou que o campeiro
“virava a cabeça pro pago!...”.

Então...
como não há mal que sempre dure
nem dia que não chegue...
manoteou, novamente, nos peçuelos
- poncho emalado - ganhou a estrada,
a tropear suas lembranças
entre a poeira dos anos.

Ao tranquito,
foi vencendo distâncias, costeando cercas
- arames... tramas... moirões...
cordas, trastes e cavaletes-
guitarra guapa dos ventos!...

Sempre...
Sentia que os antigos
- aqueles que portavam copos de guampas
com bocais de prata,
da voz amiga, conselho bueno
(os quais o Patrão Velho
reculutou prá Estância Grande) -
amadrinhavam-lhe os passos.

Chegando...
Ainda longito, avista a roda da carreta que
- escorada à parede secular -
orna o pitoresco quadro pampeano.
O coração corcoveia!(saudade da carreta)...
boi Neblina, boi Sereno,
parceiros de tempo e lida...
De relancina,
nota que tombaram os cinamomos
que haviam junto à porteira,
tombou, também, a figueira, mas,
lá está ele – o palanque –
razão de suportar a distância
- parceiros de resistência,
a cabrestear o destino!

Não!...
Nunca esteve tapera a fazenda antiga!
Até porque...
a alma desse campeiro
sempre se fez presente,
no galpão, na sombra da figueira,
no lombo xucro dos potros...

O taura...
seu jeito humilde,
calmo qual água de cacimba,
com o coração - grande invernada -
emocionado,
transpôs a cancela e,
os barreiros, tajãs, seriemas,
os alvissareiros quero-queros,
impeçaram o alvoroço,
repercutindo a notícia
às coxilhas, às águas puras da sanga,
como dizendo:
- “Indiada, o Zé da Pinha... voltou”!

10 - TODOS OS VENTOS
Autor: Carlos Omar Vilela Gomes
Intérprete: Liliana Cardoso

Amadrinhador: Piero Ereno

O coração que nos leva pulsa forte
E mostra em seu sangue porque veio...
Porque se inscreveu nestes silêncios
Que marcam suas pegadas pela areia.

O coração que nos leva tem recados
De um tempo que não quis ficar pra trás
E trouxe pra este tempo seus guardados,
Bebendo dos seus próprios mananciais.

Não é de sonhos miúdos
Que um povo molda sua argila
E redesenha seus mapas...
Não é com brisas esparsas
Que a vida mostra sua cara
E impõe sua condição.
São sonhos que surgem plenos
Com sentimentos extremos,
Com toda a fibra da alma;
Mostrando que pela história
Só se conquista a vitória
Com as armas do coração.

Nós somos todos os ventos
Que cumprem velho ritual
Num berço de gauchismo
Plantado no litoral.

Já faz um século e meio
Que nós te vimos nascer...
Tenteando os primeiros passos
De uma história a florescer.
Te vimos ganhar o mundo
Campeando luz e esperança
Porque, Conceição do Arroio,
Apesar de tantos sonhos
Ainda eras criança.

Os memoriais que guardamos
Em nossos itinerários
Fazem parte do inventário
Que pelo tempo somamos;
Te vimos, ano após ano,
Te vimos, dia após dia,
Escrever rumo e magia
Nesta terra em que ventamos.

Há cento e cinqüenta anos
Nós vimos a Freguesia
Se apartar de Santo Antônio, .
Ganhar o nome de vila.

O pássaro ganhou plumas
As plumas viraram asas...
E o tempo, que é ferro em brasa,
E não dá vau nem perdão,
Por certo abriu seus caminhos
E acolheu com carinho
Os teus vôos, Conceição!

Os anos foram passando
E tu seguiste de pé...
Somando Torres, Palmares,
Logo depois Maquiné.

Mudaram distritos, comarcas
Mudaram as ordens, as leis...
Provaste sangue e mortalhas
Na guerra de vinte e três.
Mas nada mudou teus sonhos
Que pealo nenhum desfez.

Nós lembramos, Conceição,
Quando deste o coração
Em verdadeiro ofertório!
E com as bênçãos de Deus,
Em honra de um filho teu
Te batizaram Osório!

Osório! Disse o mundo aos
quatro cantos,
Tão forte que sua voz ainda ecoa
Nas águas inquietas do oceano,
No espelho cristalino das lagoas.

Vão cento e cinqüenta anos
E nós seguimos passando...
Bailando com os cata-ventos,
Girando, sempre girando.

E continuamos ventando
Pelo correr dos teus dias...
Osório de tantos sonhos,
Palco de canto e poesia.
Do verde manto dos morros
Tantas asas coloridas,
Contraponteando teus vôos
Pelas lonjuras da vida!

Hoje os novos cata-ventos
Não são somente um girar...
São a face do futuro
Se desenhando no ar.
E quando neles chegamos
Com nosso beijo fecundo,
Geramos fontes e auroras
Pra os desafios do mundo.

Nós somos todos os ventos
Que cumprem velho ritual
Num berço de gauchismo
Plantado no litoral.

És Conceição, és Osório,
Buscando sempre crescer;
Sabendo pra onde ir
Porque sabe de onde veio;
Agora somos platéia
Pra o sopro dos teus rodeios...

Já faz um século e meio
Que nós te vimos nascer!

 

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