1ª QUADRA - SETEMBRO DE 1996


1 - SE MARX FOSSE PEÃO
Autor – Juarez Machado de Farias
Intérprete – Cid Mariano Menezes - Violão – Fernando Mendonça Mendes

A estância se acordou
Em dia de campereada
Chiando pelas cambonas
Pra se iniciar a mateada.

De repente, um peão barbudo
– atando a segunda espora
– abriu a boca sisuda,
pondo os olhos campo a fora.

E falou pros companheiros
De mesmo rumo e ofício
Numa tal da “mais valia”
Falando em tom de comício

Contando um pouco de história
– revoluções, coisa e tal
–Foi falando de “trabalho”,
“propriedade” e “capital”.

Terêncio ficou sabendo,
Com os “óio arregalado"
O que nunca, então, pensara:
“todo o peão é explorado...”.

E aquele peão barbudo,
Com a melena comprida,
Foi falando enquanto via
Toda a peonada reunida...
“A peonada leva a tropa”.

Pra morrer no matadouro,
esfola a bunda nos “basto”
O Sol veio queima o couro
- mas o patrão barrigudoé
que embolsa todo o ouro!

”Se madruga todo o dia
Pra “laçá” e “curá” bicheira,
Se afunda os “garrão” no barro
Co’essas “vaca” da mangueira
- e o que nos sobra de tudo?
Só hemorróda e “friera!”

“E ainda fazem rodeio
em nome da Tradição!
Os “boi” de língua de fora
Pr’alegria do patrão!
O que era duro ofício
Se transforma em diversão“

E tem mais: a propriedade
deve ser de quem trabalha

”Quem sustente a casa-grande
São nosso “rancho” de palha
E se a peonada joga truco,
O patrão é quem “baralha!

”Nisto, chega o capataz,
Sempre de cara amarrada...
O Carlos fica solito,
falando pra madrugada:“...

E tem gente trabalhando
sem ter carteira assinada!
”Cada um pegou seu laço
Pra mais um dia de lida.

O sol campeiro encilhou
A pampa verde estendida...
E aquele peão, no outro dia,
Pediu as contas – se foi...

Tangendo um sonho distante,
Ouvindo um berro de boi.
Alguns dizem que o patrão
É que botou porta a fora,

Porque não tinha lombo
As marcas da velha espora.
E seguiu a velha estância
No mesmo tranco, afinal:
Terêncio tirando leite,
Nestor Montando bagual...
O patrão com a guaiaca
Forrada dos “capital”...

2- PONCHO DE AUSÊNCIA
Autora _ Jurema Chaves
Intérprete – Adriana Braunn - Violão – Mário Tressoldi

Pelas várzeas do meu peito,
Onde deixaste sem nada
Uma seara de amores,
Hoje as lembranças florescem,
Umedecidas de orvalho,
O pranto da tua ausência,
a brisa faz saudades,
E, vem sussurrar teu nome,
Trazendo imagens tão vivas
como se o tempo voltasse!

Imagens que estão gravadas,
No diário do meu peito!
E, nas páginas em que deixaste
Tantas juras sublinhadas,
Vejo agora, amareladas,
Amarfanhada pela mão do tempo,
Frágeis pedaços de nós dois!
que recomponho hoje, na memória,
No vôo insano da imaginação!
Onde o som de tua voz, ficou gravada,
Como nota musical eternizada,
Na partilha imortal,De um sonho em flor!

Um cabresto de lembranças,
Traz minha alma palanqueada,
Na janela do passado,
Revendo o campo azulado,
Do teu olhar de ternura!
Onde o potro dos meus sonhos,
Carregado de desejos,
Buscava o céu do teu peito,
Pra adormecer no teu beijo!!!

Lembro teu olhar azul,
A fitar-me tão sereno,
Dois mundos, ternos...pequenos,
Dois pedacinhos de céu!
Como a estrela boieira,
Vem bordar o véu da noite,
Numa tropilha de luzes!
O lumiero dos teus olhos,
Igual estrelas cadentes,
Vem brincar no peito meu!
Como se o tempo retornasse,
E o teu sorriso voltasse,
Pra nunca dizer adeus!!!

As mãos indóceis do tempo,
Vão trançando tento a tento,
Cada momento vivido!
Embuçalando os recuerdos,
Que insistem em bolear a perna,
No rancho dos sentimentos!
Batendo estribo com o tempo
Sem tempo, pra esquecer!
A espora da saudade,
Sangrando os flancos do peito,
Só faz doer...e doer!

Porque esse amor continua,
Igual ao brilho da lua,
Que se esparrama nos campos,
Bebendo o orvalho da noite,
Tu bebes os meus soluços,
Que eu sufoco calada,
No poncho da solidão!
e no vazio que deixaste,
Ecoam passos na noite,
Embriagada de angústia,
Sentindo a falta que faz,
A falta do corpo teu!

Faltas que vem sombreando,
Caminho do meu querer,
Onde deixaste plantada,
Luz do riso mais doce,
Em cada curva da estrada!
Ao raiar de cada dia,
Tua imagem se reflete,
Como saudades florindo,
No pala branco da aurora,
Trazendo ainda nos braços,
O calor de tantos abraços,
Que um dia sem querer,

Levaste embora,
Deixando o frio de uma tapera em mim,
Onde a esperança vai mermando a cada dia!
Parece que, eu morri no
campo azul dos teus olhos,
Naquele adeus, que nenhum de nós queria!!!

Ao fitar estradas longas,
Tão vazias, desabitadas de ti!
Onde as cicatrizes rubras dos teus rastros,
Já adormeceram,
Impregnadas ainda, com teu perfume!
Seguiste, galopando a linha do horizonte,
Como quem tem um infinito pra buscar,
Lembranças tuas que a saudade cabresteia,
Nos campos solitários,
Do meu eu!
Marcas...que a xucreza do tempo não redime,
Dos momentos mais sublimes,
Que foram meus... e teus!!!

3 - PÓ DE ESTRADA
Autor – José Luiz Flores Moro
Intérprete – Valdemar Camargo - Violão – Guilherme Piantá

Nas guaritas bambas das porteiras
Fui sentinala, em tardes de guri,
Da teatina ida das estradas......
olhos distantes, de lonjura a fora,
Procurei no ritual das polvadeiras,
encontrar respostas verdadeirasdo
porque das idas e demoras.
A carreta passou, chorando rodas,
E o boi da ponta se avivou em patas
Quando a picana cutucou no lombo.
Eu não sabia,
Mas a carreta não mais voltaria,
Porque “a lo largo” da estrada fez-se estátua
E foi dormir no catre dos museus!

O rufar de patas fez tremer barrancos
- e a cortina do pó ganho os ares
como nuvens carregadas para chuva
– levando tropas para o matadouro.
Entre assovios e o lidar dos cuscos
O “eira boi” findou-se no horizonte,
Seguindo os rastros dos que vieram ontem,
mas fazendo marcas de casco
e pai de fogo para deixar pros que viriam atrás.
Eu não sabia,
Mas a tropa também não voltaria,
Pois um tropeiro bagual e roncador,
Com aporreados cavalos de motor,
Faria changas no rol das invernadas
Levando o gado, sem gritos, sem pousadas,
Sobre as potentes patas de borracha.

O peão e estância que enfrenou o zaino
E embalou “recuerdos” para domar saudade,
Também passou pras bandas da cidade
Entonado de pilcha e de esperança.
Eu não sabia,
Mas o peão também não voltaria,
Pois enormes vagalumes de ilusões
Rondariam as janelas dos galpões
Procurando o potro-liberdade
Para prende-lo, de alma e pensamento,
No “tronco” de asfalto e de cimento
De um brete chamado de cidade!

De alma e cerne
E melenas trançadas de minuanos
Veio gambeteando do grosear dos anos
O velho alambrador que plantou cercas
Para o varal das verdes caturritas...
Olhos compridos de varar os montes
Também quis ver, bem rente da barbela,
Que luz estranha era aquela
Que incendiava o horizonte?

Eu não sabia,
Mas o alambrador também não voltaria,
Pois que adiantaria ainda semear moirões
Se o pampa se rendeu às vastidões
Dos muitos e muitos latifúndios?...

E muitos outros passaram pela estrada:
- “O Ligeira” o Mascate, o Domador...(*)
Pessoas que sovaram o corredor
Em busca de um além que se fez sonho
Nos contos de fada do horizonte.

Eu não sabia,
Mas ninguém mais voltaria,
Pois onde desemboca o rio da estrada
Nas águas turvas e negras dos asfaltos,
Arrinconou-se o crime e os assaltos,
Extorquindo valores morais,
Fazendo com que além das sesmarias
Ficasse mais solita a gadaria
E mais inútil o lombo dos baguais!...

E numa volteada, também me dei por conta
que o pampa fenecia igual tapera
e apesar da minha saudade e espera,
ninguém...ninguém mais retornou!
Eu quis saber porque ninguém mais voltou
E o que encontraram de bom pra não voltar....

Desci da minha última porteira,
vesti minhas ilusões mais estradeiras
e me mandei, também, a “Deus dará”.

Porém, eu já sabia
Que também não voltaria,
Pois, como os outros, bateria o pó da estrada
Bombeando rumos que não levam a nada,
Sem ter coragem pra poder voltar...
-(*) Do Poema “Romance de Estrada e Tempo” Colmar Pereira Duarte


4 - ROMANCE DO GUASQUEIRO SÓ

Autor – Loresoni Barbosa
Intérprete – Pedro Jr. Da Fontoura - Violão – Henrique Scholz,
Serrote – Laudemir Benkenstein - Percussão – José Rambor.

Agosto alçou o poncho
Sobre os ombros da coxilha,
Entranhada nas canhadas
Todo sabor de invernia.
A noite chora nos campos
Serenas lágrimas frias,
Já não se vêem pirilampos
Luzindo pelas Campinas.

Reflete n’água do açude
Uma tropilha de estrelas,
Repontada pela lua
Entre nuvens passageiras,
A beieira mostra o rumo
Pro coração estradeiro,
Que retumba cá por dentro
Estropiado, sem parceiro.

Um temporal de saudades
Encharca as noites de espera,
Ausência bate na porta
Deixando o peito tapera.
No remanso há um par de sonhos
Boiando no mate frio,
São retalhos dos meus olhos,
Que mergulham no rio.

As raízes do espinilho
Vão abraçando as cambonas,
O fogo queima horas largas,
Sigo entoando milongas.
O minuano assoviando
Vem descendo canhadas,
Repontando quero-queros

Na solidão das estradas,
Procuro versos costeiros
Pelos galpões da memória,
Sovando corda e recuerdos
Ao lento passar das horas.
Enquanto a saudade apeia
Nos pensamentos guasqueiros
Tranço lamento e poesia

Guitarreando pros luzeiros.
Quem sabe os ventos teatinos
Que vagueiam campo a fora,
Tragam teus lábios sorrindo
Pra matizar minhas auroras.
Pois quem encanta as estrelas
Com versos e partituras
Há de encontrar uma delas

Perdida nessas planuras.
Minhas retinas se alargam
Mirando ao largo a boieira
E o meu cantar procurante
Ressoa ao léu sem parceira,
Então sofrendo essa ânsia
De andar degustando as noites
Volto a beber nos mates
Saudade de alguém distante.

O vazio das madrugadas
Preencho o rancho de anseios,
Até pelegos do catre
Sentem falta do teu cheiro.
Restou, nas várzeas do tempo,
Restevas do amor ausente,
Em meu coração charqueando
Raízes do amor presente.

Sigo acordando sóis
Que pingam réstias no poncho,
As janelas bocejando
Pintam quadros no meu rancho.
Quando a guitarra emudece
E meu peito se encerra,
A juriti ensaia um canto.
Que saudades da primavera!

Quem sabe esse tempo amargo
Sinta sede dos verões,
Bordando pastos nos campos
Pra saciar recordações.
Quem sabe ao passar o inverno
Possa voltar a querência
E sentir o aroma das flores
Que choram a tua ausência.

5 - FRAGMANTOS MEMOMIRAIS DE UM ANÕNIMO
Autor – Moisés Silveira de Menezes
Intérprete – Joel Capeletti - Violão – Henrique Scholz

Não, não me julguem por favor, pilchado,
Bem montado em flor de flete;
Pelas bailantas, fandangueando alpedo,
Arrastando a asa pra morochas lindas.
Em fins de semana de carreira e festa
Golpeando um trago, orelhando um truco.
E os “pé no chão”? Que revolvendo o pasto,
Terçaram arado, saraquá e manguá,
Pra engordar as burras do senhor da terra.
Gaúchos buenos, guerreiros olvidados
Pelos escribas das velhas almenaras
E, que passaram “lejo” das canções bonitas.

Não retratem, por respeito, minha prenda
Em belos panos floreados
Com fitas e flores, no cabelo em tranças,
Dançando valsas e chamamés dolentes,
Em romanescos fandangos de campanha.
Por que não a campesina?
Audaz parceira, de estrada e sonho,
Mãe, amante, esposa, amiga.
Timbrada na interpérie do rancho espartano,
Só, na ausência alternada dos guerreiros;
Olhar esgarço, plantado no horizonte
Na muda angústia de esperar notícias.

Também não cantem minha desdita
De exilado em vielas de vilas pobres
Pois, desde o princípio, fui apenas,
No ermo infindo dos fundões de campo,
Figurante sem nome de uma história,
No ir e vir de Quixote andarilho.
Lutei por trezentos anos, bem mais
E pouco juntei de meu, quase nada.
Gastei vida e potro nas guerrilhas,
Pela causa obscura dos coronéis,
Que renasceram em bronze nas praças e avenidas.

Dizem, que lutei por liberdade
Mas da liberdade, essa potra arisca
Ficou só um conceito confuso, indefinido
Entre a lonjura imensurável do horizonte,
A largura sem fim do campo aberto,
As patas peregrinas de meu flete
E o viver rude, andejo, de estradeiro.
Talvez tenha guerreado por guerrear,
Para aplacar a nômade inquietude,
A sede louca de engolir distâncias,
Herdadas por certo a mouros ancestrais,
Que patearam pátria no deserto.

Porém é certo, alarguei fronteiras
Redesenhando a geografia da querência.
Criei contornos e limites novos, riscados pelo aço
De lanças, patas, adagas, esporões e braços,
Fazendo pátria sem saber conceitos
Povoando campos entre o Oceano e o Uruguai lendário.
Entre a Vacaria dos Pinhais e a do Mar, ao sul,
Escrevendo a meridional história americana,
Trançando ferro com os irmãos da prata,
Correndo a fogo o bandeirante intruso.
Fortaleza viva de centaura estampa,
Caudal de estórias nos fogões de ronda.

Mas, ao herói sem plata, de anônima figura
De corpo gasto pelo rigor do tempo, esse algoz,
Que iguala todos no mangueirão da vida,
Não sobra bronze para estátua ou busto,
Pois, a história, escrevem-na os vencedores,
Com o sangue derramados dos ingênuos,
No couro esfarrapado dos vencidos.
Mas, o silêncio das campas, de inscrições ausentes;
Mudas testemunhas na nudez dos campos,
Me erguerá uma estátua de perenidade,
Que ao gemido triste dos ventos pampeanos,
Me fará eterno nos galpões de estância.

A voz do povo, perpetuará meus feitos,
Em mio às brasas de um foguito manso,
Algum piá trabuzana me fará presente,
Gineteando fletes de taquara e vento,
Pelas Campinas, assoviando a esmo.
Serei lembrado, num futuro, é certo,
Na xucra melodia de uma oito-baixos,
Costeando lindo um cantador solito;
No timbre austero dos recitadores,
No contra-ponto das trovas e pajadas,
Nos melífluos sons, das guitarras andaluzas,
Que aportaram aqui, para transmutar cantigas.


6 - DAS PAISAGENS QUE TRAGO

Autor – João Carlos da Fontoura
Intérprete – Loresoni Barbosa - Violão – Valdir Verona

A forte garoa guasqueada
Que vinha do sul, se aninhava
Nas quinchas do galpão tosco.

O zaino negro tapado,
Descansava uma pata como a prenunciar
Uma viagem de longos caminhos.
Poncho desemalado, fiambre na mala,
Fumo e palha buena, uma chapéu “manguera”,
E o olhar de quem nunca saiu antes.

Foi assim que numa tarde de setembro
Deixei o rancho e o rincão onde nasci.

Mas não somente isso, muito mais ficou por ali,
Uma vida de muitos anos e meu sonho de guri
Dos meus fletes de taquara que fiz as primeiras carreiras,
Depois os potros que domei de rédeas,
Botei freio e entreguei pro dono.

E o mundo pedia vaza,
Maus olhos tinham ganas de engolir distâncias!
Então, fui cadenciando no guizo das esporas
Uma milonga “surena” – daquelas à moda “larrealde”
-Templada a sóis de janeiro e a guasqueiros de agosto,
Dessas que volta e meia, vem pastar no para-peito
Das lembranças de quem traz o coração cansado,
De tanto falar com a solidão!...

Depois o perfume da Maria-mol,
Foi adoçando meu andejar.

E o que antes era campo e mangueira,
Se embretará no corredor estreito e
Comprido da esperança, onde poucos sabem o fim.
“lá-maula” só quem sente pode falar
Da dor que os cravos da saudade provocam,
Quando a vida cerra esporas e nos faz
Apurar o trote por caminhos desconhecidos

Então, no bebedouro dos meus sonhos
Colhi sementes de paz e amor,
Depois plantei meus versos,
Que hão de se fazer cantigas
Nas bocas de tantas e tantas noites.

Pois um dia, ao trocar de ponta
Com um sobre-lombo derradeiro
Daqueles tempos sesmeiros,
Meus sonhos e ilusões renascerão nos galpões,
No balbuciar das cantigas,
Nas goelas enrouquecidas do crepitar dos fogões.

“Chomico”, vida baguala,
Deixei pra traz as estradas,
Peregrino me fiz andejo,
E hoje tenho apenas reminiscências,
Pois tudo está aquém de meus horizontes.

E que buscar nessa andanças?
O pingo que encilho tem outra marca,
mudou de trota, são outros os relinchos que ouço agora.
Quem sabe então, voltar!
Ah, se eu pudesse agora voltar, voltar e voltar,
Chegar na querência e dar um “ô de casa”
E ouvir um “adelante Hermano”
Que lindo seria novamente as lides de apartes e domas,
E dos pastos do chão arrancar
Versos xucros para as cantigas gavionas.

Que pena!
É tarde demais.
Agora parceiros, somente agora sei
O que passaram os iguais a mim,
Um dia deixaram o pago, morreram!
Talvez assim como estou morrendo:
De dia bebo lonjuras, de noite mastigo lembranças
Que são cada vez mais amargas.

E de que me adianta agora
Lembrar que o fui e o que passei!...
Nada mais trará de volta o que deixei
Naquela tarde de setembro.
Parece um castigo, ainda trago da última
Olhada pro rancho, uma panela no gancho da trempe,
E um cusco ovelheiro lambendo minhas botas
Como a pedir que ficasse.

Foi assim que um dia deixei o campo,
O rancho da estância e o rincão onde nasci.

Talvez seja por isso, que quando abraço a guitarra
- amante dos pajadores, renascem sonhos antigos,
De antigos amores;
No bojo do coração, vou sorvendo em goles
Longos e amargos essa infusão da saudade.
E quando as imagens, que o tempo bordou
Na tela dos olhos do pago, refletem n’alma,
Eu viro a erva do pensamento
Pra que não morram comigo
Essa paisagens que trago.



7 - NO BAILE
Autora – Ruth de Farias Larré
Intérprete – Ruth de Farias Larré - Violão – Gricelino da Silva

São muitos dias de espera,
Ansiedade, fantasia.
O sonho desata, louco,
A inventar mil quimeras.
Ai, que encontro majestoso!
Sim, o príncipe virá!

E, nos seus braços galantes,
Ao rodopio das valsas,
Ao embalo das milongas,
Seus olhos terão fagulhas,
Seu peito, uma labareda.
E a voz, juntinho da orelha,
Cadenciada e aquecida,
Será poema e canção.

Enfim, o dia é chegado!
Um dia todo alvoroço.
É o vestido, é o sapato,
A meia, o laço de fita,
A pintura para o rosto,
O lápis d sobrancelha,
Água-de-cheiro, batom.

“Ai, meu cabelo ta feio!
Tem que ter brilho de seda,
Tem que ter cheiro de flor!
Ai nda não sei quem é ele,
Mas sei que vou encontrar!
Eu tenho que estar bonita,
"Bonita de apaixonar!“

“Vamos, filha, ta na hora”,
O baile vai começar!”“.
“Vou indo, mãe!
Ai, meus brincos!
Me ajuda, mãe!
To bonita?
Quem sabe troco de vestido?
Quem sabe desato a fita?
Será que vão me tirar?

No salão, muitos já dançam.
A música transporta os pares
Pras veredas do prazer.

“To aqui faz quase um ano!
Ninguém me vê, Deus do céu!
Se não for meu soberano,
Que venha um cristão qualquer!”

“Também! Por que eu não posso?
Por que é dele o poder?
Por que é que só o homem
Tem direito de escolher?
Tem mesmo que ser assim?
Queria eu ver um rosto,
Um olhar que me agradasse,
E ir busca-lo pra mim “.

Enquanto esse devaneio
Atordoa o coração,
Alguém para a sua frente
E convida pra dançar.
“Não era esse o do sonho,
mas tem passos ritmados
E um jeito bom de dançar”.

De repente, dá-se conta:
Que bom ter sido escolhida,
Que bom não ter que buscar!
“Que ele venha e eu decida
Com quem me agrada ficar.
Não quero sofrer repúdio.
Seja ele a se arriscar!”

“Enquanto não vens, meu príncipe,
o meu sonho te recria.
E se alvoroçam as asas
Desta doida fantasia”.

“Que o coração se exaspere,
Que se machuque na espera,
Nos enganos e nas ânsias.
Mas que me escolham nos bailes!
A mim, na dança, me cabe,
Ao Som de chote ou bolero,
Selecionar o parceiro
E decidir: este eu quero!”“.


8 - ELEGIA AO ÚLTIMO INVERNO
Autor –Loresoni Barbosa
Intérprete - Alan Astor - Violão – Reinaldo Alexandre de Ávila

Antes do sol se bombear no açude,
Deixei o calor dos pelegos
Pra emprestar aconchego
E prosear com a guitarra.

Cevei um mate de espera
Entre milongas antigas
E fiz dos versos parceiros
Nessa tropeada de vidas.

O brasileiro pariu em chamas
Clareando a madrugada nua,
E uma cambona tisnada
Meio enfumada nas brasas,
Traindo o calor dos mates
Charlava e emudecia...

Ah! Esses invernos sem graça!
As grotas brotam aos poucos
Na imensidão fumacenta,
Bordando o verde dos salsos
Sobre os pelegos de agosto.

Parei a bombear meus trastes,
E senti que a mão do arremate
Dessa jornada terrena
Me acariciava as melenas
Como quem nana criança.

“Lá fresca”, que lida infame.
Esse inverno desgranido
Parece que vem de dentro
Intangue a alma primeiro,
Depois do poncho surrado
Deixando o campo judiado
Neste silêncio invernal.
Que agosto caborteiro!...

Então, pra aquentar a alma
E o corpo velho encarangado,
Retoco o fogo com força,
Falo sozinho, me calo.
Um grito ecoa por dentro
E o peito mouro estremece,
Da garganta brotam preces,
Que se esparramam no ar
E as milongas se alargam
Procurando o meu cantar.

As lembranças vem a galope
Com a saudade nos tentos
E atropelando a memória
Faz-me rever a história
Abrindo as cancelas do tempo.

Quando o vazio dos corredores
Se agrandava nas lonjuras,
Eu repontava meus sonhos
Montando um baio de taquara,
Mas meus sonhos teatinos
Se enfumaram nos caminhos
Entre espinheiros e auroras.

Armei mundéus nas grotas,
Campeei, campereei, insisti,
Mas meus sonhos de guri
Nunca mais encontrei.

Quisera voltar no tempo
Para remendar o passado.
Quisera tropear sem pressa
Nos corredores de outrora,
E rondar nos quatro cantos
A minha tropa de sonhos,
Que se perdeu pelos anos
Entre espinheiros e auroras.

Mas, chegou o último inverno
E o que me resta desse conflito,
Se já me sinto tão dele?
Sim, cansei de matear
Nessas manhãs que me arrastam,
Pois entre o mate e o pito
Tem solidão, tem saudade.
Cansei de ver o meu rosto
Nesta cacimba orgulhosa,
Que só me mostra resquícios
De um semblante em primavera.

Quando mermarem estas manhãs
Farei do rancho tapera,
Pra descerrar as cancelas
Dos ermos campos sem fim,
Terei pedaços de mim
Varando no pajonal,
Repontando novos sonhos
Sobre o dorso d’um bagual.
Guiado pelo cruzeiro
Vou guitarrear pros luzeiros
E acalantar a boieira,
Pois será minha parceira
Nesse reponte final


9 - ESSÊNCIAS
Autor - Wilson Araújo
Intérprete – Wilson Araújo - Violão – Leonardo Charrua


Um galpão, um fogo de chão,
Um manojo de jujos pendurados à parede
Uma tira de couro que ganhou de um amigo,
Para os dias de chuva,
Nos finais de semana,
Tirar alguns tentos e ensaiar
Uma trança que aprendeu
Com o pai quando era guri.

Em riba de um cepo
Um pelego sovado.
No canto da mesa,
Uma massa de carreta suportando a cuia.
Uma chaleira de ferro,
Uma panela três pernas
Que descança em silêncio
Na trempe chilhona de
Dos fogões campeiros.

O chiar da cambona,
Encostada nas brasas, ressona
Com calma o seu musical.
E traz na lembrança as coisas
Marcantes, quando deixou a querência:
Por motivos que a vida
Impôs no caminho.

O verde dos campos, com marcas
Salientes dos capões de mato.
Das sangas correndo em direção ao rio,
- refletem retratos -
Que seus olhos viram num
Tempo saudoso que ficou pra tráz.

O rubro do fogo, que
Seus olhos vêem é a barra do dia,
Surgindo bonita de trás do horizonte.

O canto dos pássaros
O berro do boi!
E o relincho dos potros,
Ficam nítidos e puros,
Nos poemas campeiros
Que os poetas escrevem
Musicando a vida.

Que as ondas sonoras
De um rádio de pilhas
Lhe traz para o rancho.

O sentimento terrunho
Que trazes no peito,
Abastece a alma!
Com as coisas mais lindas
Que o pago lhje deu:
A infância, o respeito, o amor
Pela terra e o valor profundo,
Que ficou na resteva da vida,
De seus ancestrais!

Mas, quando a alma campeira
Vazia de campos retouça
No peito a saudade maior,
As lembranças tranqueia
Retesando o garrão,
Vencendo o repecho da vida
De um homem que mateia pensando,
Sentindo o confronto de uma vida
Urbana que tem o redor!

Por isso o galpão, retrato de ontem
Reproduz a querência!
Porque mudar uma planta para outra terra,
Ficam marcas no chão...
Rebrotam outros galhos
Mas, não muda a essência


10 - DO LADO DE CÁ DA PONTE
Autor – Juarez Machado de Farias
Intérprete – Juarez Machado de Farias
Violão – Fernando Mendonça Mendes


A estrada que corta a serra
Leva a traz rodas ligeiras
Diferentes do passado
Com carretas cantadeiras.

Poergunto: Se este progresso
Que fez motor pras esquilas,
Reduziu as injustiças
Dentro da estância e das vilas?

Ontem, mesmo, eu vinha a trote,
Bombeando o sol no horizonte,
E saudei um rancho tosco
- do lado de cá da ponte...

Construção de barro e palha,
Beirando a estrada de chão,
Flor terrunha da pobreza
- que alguns querem tradição.

Do lado de cá da ponte
- divisora em geografias
e, talvez, da “boa-nocva”
das igualdade tardias.

Então, conheci teu rosto
Curtido a ventos de agosto,
Capinando o “abobral”
Na hortinha de taquara
Por onde se pendurara
O viço do porongal.

Atrás do rancho, o matinho
Com canários e sabiás,
A sincera sinfonia
Que vem acordarte o dia,
Gaúchode mão vazia
- braço irmão de saraquás!

Carregando água no arroio
- no exercício da paciência –
a estrada é a tua querência;
o verde a erva, apenas,
teu pampeano minifúndio
- e um sonho de ter ovelhas...

Do ladao de cá da ponte,
O santa fé do teu ranho;
A cambona presa ao gancho;
Luz fraca de lamparina;
Sapos iguais recitando
Os versos que a noite ensina.

És o pago maturrango
- o que não lança e não monta;
lá, na venda, paga a conta
com dinheirito contado
- fruto de safra ou roçado,
e o mais com que se defronta.

És o Rio Grande sem voz,
Que o arame fez encerra;
És guerreiro de outra guerra
- que o pobrerio faz coluna;
és a própria erva-caúna;
és o Rio Grande sem terra”


11 - DEVANEIO
Autor – Paulo de Freitas Mendonça
Intérprete – Patrocínio Vaz Ávila
Violão – Valdir Verona

Quando o horizonte límpido
se enponchou de nuvens
Matizando o céu
Refletindo sóis por imagens suas
Desencilhei o pingo. O larguei ao campo
E fui pro rancho, matear solito.

O fim do dia repontou a lua
E a noite prateada ainda mais xirua
Foi o palco de sonhos e pensamentos vagos...

Recordei andanças
e criei bonanças num futuro meu.
Divaguei nos campos do meu faz de conta.

A fauna campeira que me faz costado
A cada final de dia ou alvorada
Gorjeou carinhos ao meu devaneio.

Lembrei da chinoca de louros compridos
Qua há muito eu queria tê-la por minha.
De lábios corados e pele macia
Que eu por não ter coragem
Só em sonhos a tinha.

Pensei no meu rancho repleto de piás
Crescendo na lida pra domar os potros
Quando eu não mais puder.
Pra erguerem seus ranchos na volta do meu.
Perém conclui:
Os filhos que crescem abandonam o ninho
E traçam caminhos em rumos só seus.
O ronco do mate,
Da cuia vazia me põe em alerta.

É fácil em sonhos criar universos
E tão adversos dos nossos reais
Difícil é ter nos dias singelos
Um mundo harmônico
De encantos e paz...

A água bateu na quincha do rancho
Um raio de luz, a seguir um trovão.
O tempo mudou, sequer eu notei.
Eu tão submerso nos meus pensamentos
Não senti o frescor e o rumo dos ventos.

Secou a chaleira. A erva lavou.
O tempo estiou.
As brasas do fogo cobertas de cinza.
A mim mais um dia na tarca da vida
E a noite é comprida, pra um só que mateou.


REINCIDÊNCIA
Autor – Colmar Pereira Duarte
Intérprete – Dorval Delgado Dias - Violão – Leonardo Charrua

Amanhece sobre os campos.
A bruma que se esgarça nos banhados
E esconde a a sangas
E o capim molhado,
Contrasta o céu límpido e claro
Onde ainda cintila alguma estrela

Galponeira tropilha
Abrindo estrada no sereno gelado da coxilha.

Do meu galpão
- humilde e enfumaçado -
olho em silêncio
e me parece um sonho;
e a tropilha
que vem em disparada,
da a ilusão que chega, inda molhada,
escapando das águas, na procela
onde o mar engoliu as caravelas
do tal Juan e Solis,
em Maldonado.

E o campeiro
que avulta na culatra
como um centauro contra a luz da aurora!

(sob tal sortilégio de magia
imobilizo a cena em uma tela.
Juan Manuel Blanes, reconheço agora
nesses matizes do nascer do dia.)
Por certo é Tiarajú
- lunar na testa -
tentando proteger o que nos resta,
do instinto predador do bandeirante.

Lembro os paióis
das safras missioneiras
enchendo a boca de gordas algibeiras
na rota natural
de São Vicente.
E os nativos da terra
novamente
- mãos amarradas, gritos sufocados
a mercê da extorsão legalizada.
Retorno a realidade.
É outro tempo.
Dois séculos depois há outra gente.
Não há mais Tiarajú
nem São Vicente.
Somos celeiro de um país com fome.
Carne, lã, trigo, arroz que se consome
brotam dos campos
roças e cercados.

A tropa de Solis
multiplicada,
cantada em prosa e verso sua glória,
virou bronze na praça,
fez história
foi dignificada no trabalho.

A gadaria alçada e orelhana
deu lugar aos rebanhos das cabanhas
que abastecem país e continente.
Mas nem tudo mudou
neste meu pago.
Os nativos da terra
estão iguais.

Mãos amarradas,
mudos,
extorquidos
a esperar os retornos
prometidos
aos avós dos avós de nossos pais.

Falta esse taura
de lunar na testa
falta quem fale alto e com entono
pra defender aquilo que nos resta,
pra mostrar
que "esta terra tem dono!".

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